Uma pessoa passa uma vida inteira a tentar aceitar o seu corpo, cada parte, as imperfeições, a aprender a gostar dele.
Passa uma vida a tentar mudar os nossos olhos e observar as imperfeições como traços singulares, com a sua beleza singular, que fazem de nós uma pessoa única.
Passa essa vida a tentar gostar, do sinal, da marca, da recta naquele espaço ali, ao invés de sonhar com uma curva e vice versa.
Passa uma vida a aprender a amar tudo o que detestávamos e, quando, finalmente, estamos em paz connosco, quando, finalmente, somos renitentes ao desejo de mudança e não alteraríamos nada em nós porque isto é o que somos e deverá ser acarinhado com orgulho e, caramba, finalmente, gostamos mesmo de nós assim, tal como estamos, não querendo sequer pensar em alterar uma vírgula, informam-nos, da noite para o dia, que teremos que alterar a nossa fisionomia.
Ontem, consulta de otorrinolaringologista.
Médica brasileira, jovem, toda despachada, recomendada para ver se resolvia finalmente o problema de dificuldade de respiração e crises de falta de ar, que me tem acompanhado sensivelmente desde Setembro.
Olha para o TAC e diz :
- Você tem hipertrofia dos cornetos e o ar mal passa, Alexandra. Vamos ter que operar.
- Operar?
- Sim mas olha, já que vai ter que alterar, aproveita e faz um nariz bem bonitinho. Você vai ter mesmo que tirar esta curvatura, cortar os cornetos, arrebitar aqui. Vai ficar lindo o seu nariz! - Entusiasmada como se eu tivesse acabado de ganhar "o" presente de Natal.
- O quê? Alterar? Mas...
- Olha, está aí o cirurgião e é o único que trata do problema e resolve a estética, aproveita já, vou mandar já você para ele e ele faz já as medições!
- Sim, mas não está a perceber...
- Vai ficar com um nariz lindo e só assim resolve o seu problema! Não tem outro jeito. E o médico nem sempre está cá, é o único que trata da questão e faz a estética, senão depois teria que esperar pela estética. O hospital é público, nem sempre podemos escolher o melhor e ele é bárbaro! Assim faz já, antes que venha o sol. Você não vai poder apanhar sol depois.
- Já? Já? Mas... Como já?
- Já. Te mando agora mesmo a seguir à consulta para fazer as medições!
Pega em mim e coloca-me de perfil, em frente ao espelho, mostrando as futuras alterações.
- Espere! Não está a perceber! Não quero alterar o meu nariz! Em tempos já desgostei dele mas agora... É o meu nariz!
Nisto, desato num pranto de tal ordem que a enfermeira entra para ver o que se passa.
- Mas, Alexandra, vai ficar lindo!
- Nãoooooooooooooooooooooooooooooo!
Silêncio absoluto nos restantes gabinetes e sala de espera atolada com centenas de pessoas. Devo ter assustado todas as crianças do Serviço de Otorrinolaringologia.
O que me valeu à grande, visto que, por essa forma, consegui atrasar a decisão para Agosto. Receitou-me uma cortisona para aplicar até lá, sendo que serei operada se as alterações não forem substanciais.
- Pronto, pronto, Alexandra. O sol também está aí, apontamos para o final do ano e você amadurece a ideia.
O que significa que ganhei coisa nenhuma. Não há abébias para ninguém. No final do Verão, perderei a personalidade do nariz.
Por muito bonito que fique e por muitas fotos de perfil que poderei tirar a partir daí, só quero o meu nariz.
O meu nariz e não o da Blake Lively ou da Angelina Jolie ou a combinação de uma Jenifer Aniston-Halle Berry.
Assim sendo, meus caros, em termos de traumas, foi proveitoso o dia de ontem.
Deixei uma brasileira triste e decepcionada, que não compreendeu a minha falta de entusiasmo pela maravilha de poder vir a ser dona de um nariz novo, pequenino e perfeito criado num bloco operatório, a custo irrelevante.
Chorei baba e ranho o resto do dia. Hoje, continuo. Ninguém consegue consolar-me.
Nem com chocolates lá vou. (Mesmo assim, podem tentar. Já publico o endereço.)
Tenho até ao final do Verão para despedir-me do nariz.
Juntos, iremos tirar muitas fotos de perfil, fazer caretas, cheirar flores, bolos, maresia, garotos de Ipanema, figueiras e alfarrobeiras.
Terei que decidir se também retocarei todas as minhas fotos tiradas até estes trinta e dois anos mais um Verão. Gosto pouco de incongruências.
Até Agosto, assistirei a todos os programas do Dr. 90210, sem torcer o nariz. Nariz informado é nariz apurado.
Depois disso, se, na rua, repararem numa sósia da Esfinge ou do Michael Jackson, sede brandos, por favor. Lembrem-se: Apontar é feio e não metam o nariz onde não é chamado. Literalmente, foi o que ambos fizeram.
Censurar para quê?