Há dois meses a sonhar com cancro. Em mim.
Raios dos sonhos.
Há quem sonhe com as coisas mais variadas, há quem tenha sonhos felizes, sonhos eróticos, sonhos cómicos.
Aqui, não me calha disso.
Os meus sonhos são, por norma, terríveis. Ou sonho com desgraças épicas e tenho de salvar todas as pessoas que adoro. Sonho a sonho, a coisa vai aperfeiçoando e tornando-se mais angustiante, mais pérfida, mais terrível, os cenários mais desoladores. Se sobrevivo ou não, pouco interessa. O objectivo é salvar todos os que me são mais queridos e ainda desconhecidos pelo caminho. Um dia, juro que morro. Chego a ter dores gigantes no peito com os esticões. Acordo em desespero. O meu coração salta de tal forma que acho que parará repentinamente ou morrerá esmagado contra o tecto, tal é a projecção do peito. Ou tenho sonhos premonitórios. Não quero falar sobre isso. Não são coisas boas. Isso aconteceu uma vez. Um vinte a latim na prova global que se cumpriu. De resto, adiante.
Feito isto, lá resolvo marcar exames.
O meu signo é Carneiro e é um signo que vive o presente. Mesmo para quem não vai nestas cantigas, confesso que tenho todos aqueles traços e mais alguns do Gémeos, a malfadada combinação que me calhou na lotaria signo-ascendente.
Na verdade, não sou pessoa que vive a pensar no futuro. Infelizmente. A minha vida é no agora. Não sei viver de outra forma. Não sei no viver no "e se". Planear os próximos anos é algo que me atormenta. Não sei fazê-lo. Hoje é assim, amanhã será o que será. Sem amarras. Todos os "e se" do futuro atormentam-me e impedem-me de viver e até de ser eu própria. Há uns anos atrás (e quem me segue há muito sabe disso.), tive a mais amarga experiência do AVC da minha mãe, que criou inúmeros"e se's" em torno da saúde e da vida dos meus pais. Não sei viver assim. Bloqueiam-me. Por muito que me digam que não pode ser, que tenho de seguir a minha vida, há uma série de coisas que cortei das minhas possibilidades pessoais e profissionais porque vivo no medo e não quero perdê-los e se for perdê-los, quero aproveitá-los.
Muito se falou acerca da decisão de Angelina Jolie. Da coragem em remover o peito, mesmo não tendo ainda cancro. Na altura, fiquei sem saber o que faria na sua situação. Não raciocinei bem, obviamente. A resposta é muito óbvia. A Angelina não queria ter a vida a prazo. Dependente de exames a prazo, dependente de notícias a prazo, dependente de, por mais cautelosa e vigilante que fosse, poder não chegar a tempo.
Em poucos dias, passei à situação de viver a prazos de seis meses. De seis em seis meses, verificar se a bomba relógio acordou. Corrijo, as várias bombas. Sacaninhas. Não sei quando apareceram. Se há anos ou há dois meses, desde que sonho com elas. Seis meses - um prazo clínico para uma coisa que pode alterar-se em poucas semanas (e ser tarde de mais), em meses, anos ou sequer nunca despoletar.
Ainda não consegui encaixar isto. Sou pessoa de viver com o presente e a preto e branco. Não sei lidar com isto. Não sei viver assim.
Sou pessoa para morrer de cancro, após uma batalha como ninguém soube travar. Sou pessoa para morrer de cancro, porque simplesmente não quis e decidi não lutar. Porque o aceitei. Sou pessoa para morrer de desgosto de amor. Para morrer de tristeza. Para morrer de qualquer doença com a qual joguei ao braço-de-ferro ou abracei e deixei-me ir. Não sou pessoa para morrer do acaso. Não para morrer no meio da incerteza de algo que, por mais vigilante que esteja, possa apunhalar-me pelas costas.
Quase que desejo que os resultados tivessem sido outros. Por mais negros que fossem. Provavelmente, isto chocar-vos-á mas preciso tanto de desabafar.
Não sei viver assim. Não quero esperar. Eu sei que ele vai aparecer. Sei. Porque é que tenho de esperar por ele? Porque não puxar-lhe antes o tapete?
Quero muito, muito arrancar de raiz estas bombas-relógio. Quero muito ser radical mas sequer sei confessá-lo aos mais próximos. As pessoas não sabem aceitar isto. As pessoas não sabem aceitar esta mutilação mas é só no que penso.
Quero muito, muito arrancar de raiz estas bombas-relógio. Quero muito ser radical mas sequer sei confessá-lo aos mais próximos. As pessoas não sabem aceitar isto. As pessoas não sabem aceitar esta mutilação mas é só no que penso.
Só penso em, só quero, só desejo arrancar tudo de raiz.